| PÁGINAS

sábado, 26 de julho de 2025

🚶Quando o Caminho Escolhe o Caminhante

. . .

Há uma sabedoria silenciosa nas esquinas da vida que só compreendemos quando já viramos várias delas. Às vezes caminhamos convictos de que somos nós quem decidimos a direção, outras descobrimos que fomos escolhidos pelo próprio trajeto, como se as ruas tivessem vontade própria e nos conduzissem para onde precisávamos estar.

 

Lembro-me de uma tarde qualquer quando ainda acreditava que tinha controle total sobre meus passos. Havia traçado um mapa mental do futuro: carreira linear, relacionamentos previsíveis, sonhos organizados em gavetas etiquetadas. Então a vida fez o que ela sempre faz com nossos planos meticulosos — riu. Não com crueldade, mas com a ternura de quem sabe que precisamos nos perder para nos encontrar.

 

O primeiro desvio chegou disfarçado de perda. Um emprego que desapareceu como fumaça, levando consigo a segurança que eu julgava inabalável. No desespero inicial, senti como se o chão tivesse se aberto sob meus pés. Mas foi exatamente nessa queda livre que descobri músculos que nem sabia que possuía. A necessidade me fez inventiva, o medo me tornou corajosa, e o vazio criou espaço para possibilidades que eu jamais havia considerado.

 

Mudei de cidade, de profissão, de perspectiva. Cada nova esquina revelava versões de mim que estavam adormecidas. A mulher que sempre teve medo de falar em público descobriu que tinha uma voz potente quando o assunto era algo em que realmente acreditava. A pessoa que evitava riscos aprendeu que a segurança verdadeira não mora na zona de conforto, mas na capacidade de se adaptar ao inesperado.

 

E então percebi algo curioso: não era mais eu quem escolhia apenas os caminhos. Os caminhos também me escolhiam. Oportunidades apareciam onde menos esperava, pessoas importantes cruzavam minha trajetória nos momentos mais improváveis, portas se abriam quando eu nem sequer estava batendo. Era como se o universo tivesse seu próprio GPS e eu fosse apenas uma passageira confiante na jornada.

 

Hoje entendo que existe uma dança sutil entre nossa vontade e o acaso, entre nossos planos e os planos que a vida tem para nós. Às vezes somos o condutor determinado, às vezes somos o passageiro contemplativo. E talvez a sabedoria esteja justamente em saber quando assumir o volante e quando nos deixar levar pela correnteza.

 

Porque no final das contas, tanto faz se fomos nós que mudamos de rumo ou se foi o rumo que nos mudou. O que importa é que chegamos onde precisávamos chegar, carregando na bagagem todas as versões de nós mesmos que coletamos pelo caminho. E quando olhamos para trás, vemos que cada desvio, cada perda, cada mudança inesperada foi, na verdade, um encontro marcado com quem estávamos destinados a nos tornar.

 

A vida nos ensina que os melhores destinos são aqueles que nunca planejamos alcançar, e os melhores caminhos são aqueles que nos obrigam a descobrir do que somos realmente feitos. E assim seguimos, entre escolhas e acasos, sabendo que tanto a direção quanto o caminhante se transformam a cada passo dado.

sexta-feira, 25 de julho de 2025

🙏🏻Sextou com “S” de Sentido

. . .

Sexta-feira chega e, com ela, um certo alívio. Um respiro, ainda que breve, no meio da correria da vida. Mas hoje, sextou com “S” de muita coisa — e não estou falando só de samba, suor ou cerveja gelada. Sextou com “S” de saudade. Aquela que aperta o peito de repente, sem nem perguntar se pode entrar. Saudade de quem já foi, de quem está longe, ou até da gente mesmo em outras versões que o tempo levou.

Tem também o saudosismo, essa mania bonita de recordar, mesmo que a memória engane e pinte tudo com cores mais vivas do que eram. E que bom que engana — às vezes a lembrança adoça a alma mais do que a realidade adoçou na hora.

Sextou com “S” de sossego, aquele que a gente procura desesperadamente depois de uma semana inteira de compromissos, prazos, tarefas e cobranças. Sossego no corpo, mas, principalmente, na mente. Aquele silêncio bom, que vem depois de desligar o celular e ouvir só o som do próprio coração batendo devagar.

Sextou com sentimentos. Porque ninguém escapa deles. Tem dia que o coração parece uma casa bagunçada: sentimento por tudo quanto é lado. Amor, raiva, esperança, cansaço, ternura, ansiedade — tudo misturado, convivendo como quem divide um mesmo teto e aprende a respeitar o espaço do outro.

Sorriso também entra na lista. Um dos “S” mais poderosos. Às vezes pequeno, tímido, quase escondido. Outras vezes largo, escancarado, desses que chegam primeiro que a pessoa. E ainda bem. Um sorriso sempre muda o ambiente, ainda que só por dentro da gente.

Sinceridade também sextou. Aquela verdade que a gente conta pra si mesmo, mesmo quando não é bonita. Ou aquela que oferecemos ao outro, com delicadeza, tentando não ferir, mas sem abrir mão do que é real.

E se é pra falar em coisas boas, que tal sensacional? Sexta é sensacional quando a gente encontra um tempo pra ser quem é, pra fazer o que gosta, pra dizer o que sente. Quando a gente não precisa vestir armaduras nem responder “tudo bem” por reflexo.

Sextou com sensação. Com aquela brisa leve no rosto, com o arrepio bom de uma música que toca fundo, com o cheiro do café que lembra casa de vó ou infância. E sensatez, por que não? A lucidez de perceber que não é preciso viver tudo de uma vez, que o descanso também é parte da caminhada.

Sensibilidade também merece destaque. Capacidade rara de enxergar o outro, de se colocar no lugar dele, de entender sem precisar ouvir. Solidariedade, esse “S” que salva. E saudável, no corpo e na alma. Saúde que a gente aprende a valorizar com o tempo e com as ausências.

Sextou, enfim, com tudo que começa com “S” e termina em vida. Uma mistura bonita que nos lembra que viver é mesmo um reboliço — e que bom que é. Porque é nesse turbilhão que a gente se reconhece, se reinventa e, no meio da confusão, encontra sentido.

Que sua sexta seja cheia de esses — e que cada um deles te abrace de um jeito especial.


quinta-feira, 24 de julho de 2025

🛣️A Beleza do Percurso

. . . 

Ela caminhava apressada pela calçada, telefone colado ao ouvido, discutindo prazos e metas. Seus passos eram precisos, calculados para economizar segundos preciosos. Não viu o ipê amarelo que desabrochava na esquina, nem o sorriso tímido da criança que brincava na janela do segundo andar. Muito menos percebeu o perfume de café que escapava da padaria, misturando-se ao ar matinal de uma cidade que também corria contra o tempo.

 

Somos todos ela, de certa forma. Acordamos já pensando no final do dia, planejamos segunda-feira ainda no domingo, sonhamos com as férias enquanto ainda estamos no primeiro dia do ano. Vivemos numa corrida constante rumo ao “depois” – depois que eu me formar, depois que conseguir aquele emprego, depois que comprar a casa, depois que os filhos crescerem, depois que me aposentar. E assim, a vida vira uma eterna sala de espera onde nos sentamos impacientes, tamborilando os dedos, esperando que nossa vez chegue.

 

Mas quando chegamos lá – seja lá onde for esse “lá” que tanto perseguimos –, descobrimos que o lugar não tem a vista que imaginávamos. O diploma não trouxe a felicidade prometida, o emprego dos sonhos tem pesadelos que não prevíamos, a casa própria cobra impostos que não calculamos. E então, quase sem perceber, criamos um novo “depois” para correr atrás, porque é mais fácil viver no futuro do que enfrentar o presente.

 

O percurso, ah, o percurso… Ele está ali, acontecendo agora, neste exato momento em que você lê estas palavras. É o gosto do café matinal, mesmo que seja correndo. É a conversa despretensiosa com o colega de trabalho, mesmo que vocês estejam reclamando do chefe. É o abraço apertado do filho quando você chega em casa cansado, mesmo que ele esteja te interrompendo para pedir ajuda com a lição de casa.

 

A beleza mora nos detalhes que só percebemos quando paramos de contar os passos. Está no jeito que a luz da tarde entra pela janela e desenha geometrias na parede. No riso genuíno de um amigo que conta uma piada ruim. Na música que toca no rádio e, de repente, te transporta para outro tempo, outro lugar, outra versão de você mesmo.

 

Tem uma sabedoria antiga que diz que a vida acontece enquanto fazemos outros planos. Mas talvez seja mais preciso dizer que a vida acontece quando paramos de fazer tantos planos e começamos a prestar atenção no que já está acontecendo. O presente é o único tempo que realmente possuímos, e ainda assim é o que menos habitamos.

 

Não é que devemos abandonar sonhos ou deixar de ter objetivos. É que podemos aprender a sonhar caminhando, a ter metas sem perder a capacidade de nos encantar com o inesperado. É possível ser ambicioso e contemplativo ao mesmo tempo, produtivo e presente simultaneamente.

 

A pressa é inimiga da percepção. Quando corremos, vemos apenas o destino. Quando caminhamos, vemos a paisagem. Quando paramos, vemos a nós mesmos. E talvez seja isso que mais tememos – nos ver de verdade, sem a distração da velocidade, sem a desculpa da urgência.

 

A mulher da calçada, se parasse por um segundo, descobriria que o mundo não acaba se ela chegar dois minutos atrasada. Descobriria que existem cores que ela não via há anos, sons que sua pressa havia silenciado, pessoas que sua velocidade havia tornado invisíveis.

 

O percurso é onde a vida acontece. O destino é apenas uma desculpa para começar a caminhar. E a beleza, bem, a beleza está em perceber que já chegamos – chegamos a cada passo, a cada respiração, a cada momento em que escolhemos estar verdadeiramente onde estamos.

 

Por que tanta pressa, mesmo? O que pode ser tão urgente que nos faça perder a oportunidade de viver nossa própria vida?

quarta-feira, 23 de julho de 2025

📝A Existência nas Palavras: Uma Reflexão sobre o Pensamento e a Linguagem

. . .

O pensamento não apenas se expressa em palavras; ele adquire existência através delas. - Lev Vygotsky

Vygotsky, ao afirmar que o pensamento não se limita ao simples ato de ser, mas ganha forma e existência por meio das palavras, nos convida a olhar para a linguagem como um processo vital, que transforma a intangibilidade das ideias em algo palpável. Ele nos sugere que, ao pensar, não estamos apenas em um universo abstrato, mas gerando uma realidade concreta, uma vez que nossas ideias se moldam, se estruturam e se revelam ao mundo exterior pela palavra.

 

Muitas vezes, encontramos dificuldades para expressar o que sentimos e pensamos. As palavras parecem não ser suficientes para capturar a complexidade de nossos sentimentos, ou, quem sabe, a fluidez dos pensamentos que surgem em nossa mente. Porém, à medida que tentamos transpor essas ideias para uma forma linguística, elas se tornam mais claras. O processo de falar ou escrever é uma ponte entre o íntimo e o externo, um espaço onde o abstrato se materializa.

 

A fala e a escrita, então, não são meras ferramentas de comunicação; elas são a nossa forma de existir no mundo. Cada palavra dita ou escrita tem o poder de modelar o nosso ser. O que somos, em essência, se reflete não apenas nas atitudes que tomamos, mas na forma como nos expressamos. Quando dizemos “Eu sou isso”, ou “Eu penso assim”, estamos não só descrevendo nosso pensamento, mas criando um novo recorte da nossa realidade. Somos o que conseguimos dizer sobre nós mesmos.

 

Esse processo se torna ainda mais fascinante quando pensamos em como a linguagem pode modelar o pensamento de outros. À medida que falamos, estamos não só manifestando nossas ideias, mas também influenciando e, por vezes, transformando as ideias de quem nos ouve. Ao contar uma história, ou ao compartilhar uma experiência, o que dizemos não apenas preenche o espaço entre nós e o outro, mas cria uma conexão profunda, um reflexo das nossas percepções sendo moldado em outra mente.

 

Vygotsky, então, nos lembra que a linguagem é a nossa forma de afirmar nossa existência. O pensamento não é uma entidade solitária, mas um processo contínuo de troca e transformação, onde cada palavra lançada ao mundo carrega consigo um pedaço da nossa alma. Em um certo sentido, ao falarmos, estamos não apenas informando, mas participando ativamente da criação do mundo ao nosso redor.

 

Portanto, a reflexão que emerge dessa visão é a de que nossa verdadeira existência não se limita ao que pensamos, mas ao que conseguimos expressar. E talvez, no fundo, o maior desafio seja aprender a dar palavras àquilo que ainda está indefinido dentro de nós. Porque, no momento em que conseguimos transformar nossos pensamentos em palavras, damos a eles não só significado, mas vida.