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segunda-feira, 2 de junho de 2025

De Seu Zé a Jeremias — O Corte Que Vem do Tempo



Jeremias segura a tesoura como quem segura um pedaço da própria história. Desde os tempos do bisavô, seu Zé, aquela cadeira giratória nunca ficou vazia por muito tempo. A navalha, o pente e o espelho — tudo carrega memória.


O bairro cresceu, o letreiro ganhou luz de LED, o freezer agora estoca cerveja gelada, mas o cheiro de loção pós-barba e conversa boa continua o mesmo.

De segunda a sábado, Jeremias abre as portas de um lugar que é mais que barbearia — é refúgio. Entre um corte e outro, homens deixam ali não só fios de cabelo, mas desabafos, risadas, teorias sobre futebol, reclamações da política e conselhos que, às vezes, nem pediram.

Jeremias aprendeu cedo: mais importante que aparar a barba, é saber aparar palavras. Escuta tudo, julga pouco, responde no tom exato que mantém a amizade e a freguesia.

— Esse time não dá mais, Jeremias! — dispara um.

— É… tá complicado mesmo — responde, sem revelar pra quem torce.

— Esse país tá perdido, homem de Deus! — solta outro.

— Tá difícil mesmo, viu… — diz, alinhando as costeletas.

E assim segue. Navalha na mão, ouvido atento, sorriso contido. Porque Jeremias sabe: quem corta cabelo, muitas vezes, também costura pedaços de histórias.

A barbearia do seu Zé não é só ponto comercial. É ponte. É memória. É aquele lugar onde o tempo passa mais devagar, onde tradição e modernidade se apertam as mãos.

E enquanto houver alguém disposto a segurar a tesoura como quem segura o fio da própria raiz, essa história seguirá viva. Com corte preciso e alma afiada.

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